Todos os dias, às 5 horas da manhã, no coração do bairro paulistano da Vila Mariana, vê-se um vulto percorrer as laterais de um edifício oriental. Vestindo um robe marrom com um manto cor de açafrão sobre o ombro direito, ele sobe dois lances de uma escadaria espiralada e chega a um amplo terraço, às portas de um grande salão. Lá faz acordar o dia com seis badaladas em uma pesada placa de madeira, apontando-a em todas as direções. Após repetir três vezes esse ritual, ele entra pelas portas do templo e dá início à cerimônia: batidas de sinos e tambores em pulso lento, solene, acompanhadas de um canto leve, feminino, suave, que se projeta sobre as casas. É o início da cerimônia budista que abre todas as manhãs e desperta a vizinhança à volta do templo Tzong Kwan.
A LUZ DO SOM.
Os ritos sonoros representam a parte intangível na história da humanidade. No budismo, são chamados de Sons do Darma. Eles servem para organizar e traduzir os múltiplos sentidos do pertencimento a uma comunidade tendo em vista um objetivo comum: a iluminação espiritual. Ser parte desse grupo significa aderir ao conjunto de práticas e rituais que a sustentam, dentre estes a música – ou, mais especificamente, o canto devocional. Ele envolve, de um lado, a vocalização de textos sagrados e, de outro, o uso de ambiências sonoras providas por instrumentos de percussão, como sinos, gongos e tambores. É dessa combinação que os ritos e cerimônias budistas cumprem a função de conectar as pessoas à prática espiritual. Monges da antiguidade conheciam perfeitamente o poder de harmonização que a música vocal oferece à prática religiosa. Assim como a música conduz os praticantes por sucessivos estados emocionais, ela também organiza o espaço de modo harmônico. Não é à toa que as tradições budistas fazem uso conjugado de música e caminhadas pelo salão, entoando mantras e orações – o que ainda hoje testemunhamos nos templos de tradição chinesa. Cada corpo que se movimenta e canta no salão é uma fonte de energia vocal e, do conjunto, resulta uma enorme potência sonora. Somam-se os toques esparsos e percutidos dos sinos e tambores, e o espaço musical ganha uma aura mágica extraordinária. E, por isso mesmo, de grande envolvimento psicológico.
Boa parte dos ritos e cerimônias budistas envolve a criação da atmosfera sonora a partir dos instrumentos de percussão – às vezes, incluindo sopros (flautas e oboés), como no caso das tradições tibetanas, o que ressoa no espaço arquitetônico e cria um ambiente sonoro envolvente. Um exemplo célebre vem do Templo da Sabedoria Alcançada – 智化寺 Zhìhuà Sì –, em Pequim. Há décadas, pesquisadores europeus e norte-americanos vêm estudando a mística em torno da música feita nesse templo ancestral.
Dessa ambiência construída surge uma imagem sonora rica e precisa na coordenação ativa das vozes, flutuando entre incensos, pelo que cada indivíduo se conecta ao todo. Pelo menos essa concepção é bem marcada nas caminhadas meditativas, no uso das vestimentas, no gestual mínimo produzido para obter o efeito ritualístico máximo.